SÓ GOZO COM QUEM DÁ

domingo, 28 de novembro de 2010

AS GROTAS CONDENADAS

François Silvestre


O Mirante de Mãe Guilé, que será inaugurado no dia Dezoito Desbrumário, será um palanque da natureza exposto à visitação pública sobre a sacanagem da população local e a omissão oficial com a destruição do meio ambiente numa pequenina e bela serra de um pedaço de terra abandonado pelo poder público e destruído por seus habitantes.

A população de Martins, população e não povo, pois isso aqui não há, nas últimas cinco décadas, vem num processo acelerado e celerado de destruição da sua moradia. É uma coisa quase indescritível. São caçadores, broqueiros, gaioleiros e outros tipos de duendes do mal. Da fauna típica da serra restam pouquíssimas espécies.

Da vegetação, na chã e nas grotas, nada escapa ao espírito destruidor e predador sem freio e sem controle. A paisagem arquitetônica dos tempos de minha infância há muito foi desmontada ou deformada. Só escapa alguma edificação quando dela toma posse algum maluco conservador.

As queimadas nas grotas, para plantar milho e feijão, culturas não vocacionais da serra, onde cada roçado não produz nem para uma canjicada de Eraldo Porciúncula, transforma a serra numa chaga de catapora descendo e subindo as grotas. Do Mirante, esse quadro é estarrecedor. Que inveja dos habitantes de Guaramiranga. Gente que zela por sua casa.

Dos dezessete olhos d’água que acompanhavam a dobrada da serra desde a Pedra Rajada, passando por lagoa Nova e chegando até a descida da estrada para o sertão, só restam três.

Catorze foram mortos pelas queimadas e a sequidão que elas produzem. Inanição das aguadas, escassez de inteligência e carência de dignidade ecológica.

Tudo agasalhado, protegido, premiado pela cumplicidade do poder público. Prefeitura e Câmara de Vereadores. Elaborei há alguns anos um projeto de lei de Proteção ambiental do município. Fizemos uma reunião na Câmara. Todos os vereadores estavam presentes. Todos concordaram com a Lei. Só na conversa. Apareceram os eleitores das caças, dos broques e das gaiolas. A lei, “muito elogiada”, foi para a gaveta onde deve estar até hoje. Se não foi para o lixo.

Aqui não tem Procuradoria do Patrimônio nem do meio Ambiente. Não tem IBAMA. Não tem IDEMA. As letras maiúsculas não são de respeito, são de ironia. A inutilidade não merece respeito.

Um Estado tão pequeno de território não precisava ser menor ainda de administração pública. Estadeco.

Logo, logo, essas serras potiguares serão desertos escavados em lombadas de saudosos vulcões que deveriam ter transformado esse paquiderme de merda numa grande e perfumada fossa.

Pensa você, meu caro leitor, que eu estou cansado? Engana-se. Tô cansado dessa gente. Da luta, não.

Dela só cansarei no despejo da vida.. Vou continuar apontando patifes e patifarias. Companheiro de cada sagüi atingido de morte. Do sanhaçu deserdado da liberdade e de cada ipê sangrando no fogo. Té mais.

domingo, 7 de novembro de 2010

PROFISSÃO

François Silvestre

Se for a de ganhar a vida, fazer a feira, bancar a fisiologia orgânica (a necessária e boa, não a fisiologia política) sou Procurador. Não sou advogado, stricto sensu. Tenho apenas um cliente que é o Estado e a fazenda pública estadual.

Se for a que me produz um conhecimento com outros mundos e pessoas várias, me empurra para a imaginação e construção dos meus personagens e o mundo que eu controlo, sou escritor.

Mas a verdade verdadeira mesmo é que nenhuma dessas é a minha profissão de felicidade. Da alegria de viver, que é tão somente tentar manter parte do mundo e da vida que os olhos de criança fotografaram e não revelaram para os olhos dos outros, só há uma profissão que me assegura esse prazer. E é o que eu sou. Apenas um jardineiro.

A memória da mais robusta e próxima condição de ser feliz vem de um curto período da minha infância no jardim da casa da minha avó. Intervalo entre a morte do meu pai adotivo e o assassinato do meu pai legítimo.

O jardim de Mãe-Guilé tinha um conluio com ela que parece mentira de contar. Se um resedá murchasse, bastava o afago de suas mãos molhadas para no dia seguinte soltar rebentos de brotos. Era de lá que se abastecia a igreja matriz da cidade, com flores de todas as cores enfeitando os altares.

Às vezes fico pensando que a minha vida não tem sido muito mais do que a tentativa de recriar aquele jardim.

Até a edificação do mirante que leva seu nome, agora descubro, foi um pretexto para procriar um jardim. Os jardins são paridos, da mesma forma que as crianças. Mesmo que o parto seja bem diferente.

Um jardim não tem começo, meio nem fim. Cada planta do seu corpo é tempo e espaço. Diferente do museu, guarda o futuro. Semelhante à biblioteca, não sobrevive ao dono.

As plantações dos condomínios, dos hotéis de luxo, das praças públicas são arborizações ornamentais. Não são jardins. O jardim é o noivo da natureza, diferentemente do noivado humano é ele que chega atrasado à cerimônia. Ou melhor, nunca chega. Porque o jardim nunca pára de nascer.

Quando a chibanca abriu a primeira vala da fundação do mirante, abriu-se também a terra para receber a primeira muda de flores. E na companhia de coqueiros, mangueiras e cajueiros foram crescendo sete-léguas, malvões, ipoméias, dedais, camarões, trombeteiras, murtas, manacás, buganviles, roseiras, camarás, guarnecidas todas pelo cerco dos cassis.

Assim está nascendo o jardim do mirante. Que disputará uma luta inglória com a beleza da paisagem de se ver ao longe, em camadas do azul, as silhuetas de várias cidades. De dia as formas que o sol modula, diferente a cada hora. À noite, o frevar das luzes imitando as estrelas e inventando dois céus. Um em baixo, perto dos olhos. Outro em cima, perto do sonho. Té mais.