Publicado no Novo Jornal/RN
Hoje amanheci com a síndrome do Mosteiro da Trapa. Quem se lembra do único cumprimento permitido aos monges daquela casa soturna? Pois é. “Lembrai-vos da morte, irmão”.
Porém, ao falar de Felipe e Severino não é a morte que me acena. Ambos eram portadores da vida no que ela tem de mais exuberante. Simples, honestos, transparentes, leais.
Felipe nasceu em Floresta do Navio, ano de 1925. Pela vida que levou jamais imaginaria passar dos oitenta. Passou. E me parecia ser imortal. Na infância, teve o pai assassinado. Bate perna pelo Brasil todo. Mora muito tempo em São Paulo. Volta ao Nordeste nos anos Setenta e casa com Raimunda Nobre, fixando-se em Umarizal. Primo legítimo por parte do meu pai, único parente dele, além dos filhos, no Rio Grande. Éramos encangados. Havia um quarto dele na minha casa de Cajuais da Serra. Ele era a festa permanente no alpendre do sítio.
Onofre Lopes, médico e irmão cafuzo, tornou-se amigo e admirador de Felipe no primeiro contato. Décio Holanda Também. Júnior Targino era doido por ele. Era assim. Ninguém resistia a Felipe. Analfabeto, só assinava o nome. Letra belíssima. Conhecia as linhas de ônibus de São Paulo por detalhes só dele. Observador, ele era o meu caratômetro. Ao conhecer uma visita nova, ele ficava na espeita. Depois me informava sobre a impressão da figura. Nunca errou.
Um dia, ele me disse: “Véi, já tô usando fralda. Num tenho mais o qui fazer aqui”. Faleceu de infarto alguns messes depois.
Os seus teréns continuam onde ele deixou, no quarto que ocupava ao subir a serra, com Raimunda e Mundica.
Antes de aprumar do tombo com a ida de Felipe, outra bordoada. Severino. Mais novo do que Felipe, apenas passara dos setenta. Cunhado, com o qual o convívio era de irmão. Além de ser o meu assessor pra tudo. Problema de computador, ligava pra Severino, que providenciava o técnico. Queimava o chuveiro elétrico, lá vinha ele com sua tenda e paciência. Problema no Mirante, chama Severino. Sem falar que foi ele o feitor da obra da Casa de Cultura e organizador de toda a instituição.
Safenado, há mais de vinte anos, ele levava uma vida regradíssima. Da alimentação às caminhadas. Vez ou outra, meia garrafa de vinho tinto. Deixou uma pela metade, no Mirante. Gostava dos tintos chilenos.
Família pequena e unida. Sua mulher, minha irmã; um filho, nora e três netos. Cabiam todos no seu fusquinha.
No sepultamento, uma cena comovente. Todo o comércio baixando as portas ao passar do féretro. Uma homenagem singela e espontânea. Ô texto difícil.
“A morte não separa ninguém, quem separa é a vida”. Disse o poeta. Será?
Dois sanhaçus de jaqueira pousaram na tábua das frutas. Um sabiá de laranjeira avisa chuva. A ipoméia abriu um cacho novo. A vida debocha da morte. Té mais.
François Silvestre
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